“O Ano da Morte de Ricardo Reis”, José Saramago, 1984
Surpreendente, para ser lido com calma, saboreando os caminhos que Saramago nos convida a seguir ao longo das páginas deste romance. Texto de Almerinda Bento.
Uma das minhas leituras de férias é mais um dos livros de José Saramago já há algum tempo à espera de chegar a sua vez. Como sempre, fascinante, denso, com incursões inesperadas a propósito de tudo e de nada, desde expressões da nossa linguagem do dia-a-dia, até deambulações sobre a vida, a morte, o ser, o existir, o sonho… sobretudo nos encontros de Ricardo Reis com Fernando Pessoa. Surpreendente, para ser lido com calma, saboreando os caminhos que Saramago nos convida a seguir ao longo das páginas deste romance.
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Em finais de dezembro de 1935, Ricardo Reis chega de barco a Lisboa, vindo do Brasil onde esteve dezasseis anos a viver. É o reencontro com a sua cidade, ficando alojado no Hotel Bragança na Rua do Alecrim, não sabendo ainda por quanto tempo lá vai ficar. Sem planos definidos, Ricardo Reis é uma personagem solitária que vai observando e apreendendo a realidade da cidade, do país e do mundo, sem se envolver diretamente, antes colocando-se de fora.
No entanto, o cemitério dos Prazeres onde está sepultado Fernando Pessoa falecido em 30 de Novembro de 1935, é o primeiro local que Ricardo Reis visita mal chega a Lisboa. No primeiro dia do ano de 1936, quando a euforia do novo ano é vivida lá fora e Ricardo Reis já se recolheu ao seu quarto no hotel Bragança, Fernando Pessoa (ou o seu fantasma) visita-o pela primeira vez e avisa-o de que só poderão ter mais oito meses para se encontrarem e explica que tal como quando estamos no ventre das nossas mães não somos ainda vistos, mas todos os dias elas pensam em nós, após a morte cada dia vamos sendo esquecidos um pouco “salvo casos excepcionais nove meses é quando basta para o total olvido”.
O “Senhor Doutor Reis” como é tratado pelos empregados e hóspedes do hotel é um homem solitário, embora goste de almoçar em pequenos restaurantes pedindo ao empregado que não levante o prato à sua frente e deixe cheios o seu copo e o do seu companheiro imaginário. Gosta de observar e imaginar histórias sobre alguns hóspedes que jantam e frequentam o hotel e cria uma familiaridade por vezes forçada com o gerente – Salvador – com Pimenta que lhe carrega as malas e com Lídia a empregada que lhe limpa o quarto e lhe leva o pequeno almoço. Por outro lado, sendo alguém que se instala durante algum tempo no hotel sem ocupação nem ligações familiares ou sociais conhecidas, é observado não só pelo gerente e pelo empregado do hotel, mas também pela polícia política que quer saber as motivações daquele estranho doutor Ricardo Reis que regressou a Portugal vindo do Brasil. As notícias que lê todos os dias nos jornais para se pôr a par do que se passa no mundo e em Portugal pintam um retrato idílico de um país em que o salazarismo começa a fazer o seu caminho. O país da ideologia da família unida e feliz, em paz, em confronto com as convulsões que se vivem na vizinha Espanha e no Brasil. O país da sopa dos pobres e das obras de caridade em todas as paróquias e freguesias. O país onde se morre de doença e de falta de trabalho. O país dos milagres de Fátima e da devoção ao chefe, arregimentando os seus seguidores na Mocidade Portuguesa, na Legião e em outros instrumentos de propaganda como a Obra das Mães pela Educação Nacional. O país dos filhos de pais incógnitos. O país da discricionariedade e da devassa da vida privada, dos interrogatórios e da intimidação sem quaisquer motivos, o início da triste história da PVDE/PIDE. No fim do interrogatório à saída da António Maria Cardoso, Ricardo Reis sentiu um fedor a cebola que exalava Victor, o informador. Mas também noutros momentos esse fedor rondava por perto.
Lisboa, a cidade de Pessoa, a cidade onde Ricardo Reis veio para morrer, é uma cidade cinzenta e triste em que a chuva cai impiedosa. O Carnaval também é molhado e sem graça. No Verão, o calor é sufocante. A condizer com o ambiente de suspeição e desconfiança do Estado Novo, a cidade é mesquinha, coscuvilheira, intromete-se na vida dos outros. Seja primeiro no hotel Bragança, ou mais tarde quando Ricardo Reis aluga um andar na Rua de Santa Catarina, as vizinhas espreitam, conjeturam, mexericam, imiscuem-se. Até para os dois velhos que se sentam junto à estátua do Adamastor, aquele novo morador de Santa Catarina não deixa de ser um motivo de interesse para matar as horas de ócio e de conversa. Felizmente para Ricardo Reis, daquele segundo andar há uma vista deslumbrante para o Tejo.
Em Espanha, depois da vitória das esquerdas nas eleições é para Lisboa que fogem e se refugiam os detentores de riquezas, aguardando a reviravolta que não tardará com o golpe fascista liderado por Franco. Na Alemanha e na Itália, os ditadores lançam os seus instrumentos de propaganda e preparam os seus seguidores para um dos períodos mais negros da história da humanidade. No Brasil o comunista Luís Carlos Prestes é preso. As notícias dos jornais portugueses dão conta de que no estrangeiro Portugal é visto como o país que finalmente vive um período de paz e prosperidade.
E agora, as duas personagens femininas que se relacionam com Ricardo Reis. Lídia – a musa das Odes de Ricardo Reis – e Marcenda são duas personagens centrais nesta obra e neste período da vida de Ricardo Reis. Como é apanágio de Saramago, as suas heroínas são sempre mulheres fortes e decididas. Lídia, empregada no hotel onde Ricardo Reis vai viver os primeiros tempos após a sua chegada a Lisboa, é senhora de si, apaixona-se pelo doutor Ricardo Reis mesmo sabendo das diferenças sociais que a impedem de poder ter uma vida social sem ambiguidades com aquele com quem se relaciona sexualmente. Marcenda, a jovem hóspede do hotel que todos os meses vem com o pai para uma consulta médica, encontra em Ricardo Reis uma pessoa mais velha que a trata como uma adulta e não como uma criança a quem se escondem verdades dolorosas.
Muito mais haveria a dizer sobre este denso romance de José Saramago, repleto de referências poéticas a Camões, à “Mensagem” de Fernando Pessoa e aos seus muitos heterónimos, entre outros. Não sendo especialista na obra do poeta, limito-me aqui a fazer este breve apontamento sobre esta obra de Saramago que penso ser um manancial para os/as amantes da literatura e, sobretudo, para os/as estudiosos/as da poesia de Pessoa e dos seus diversos heterónimos.
Texto de Almerinda Bento, publicado na sua página do facebook a 2 de agosto de 2016
Ainda sobre : Foi imaginado pelo poeta Fernado Pessoa no ano de 1913 para dar voz aos poemas de índole pagã e, conforme sua biografia inventada, nasceu no dia 19 de setembro de 1887, na cidade do Porto. Recebeu uma forte educação clássica em um colégio de jesuítas, tendo se tornado um latinista por educação e “um semi-helenista por educação própria”. Formou-se em medicina e, por ser grande defensor do regime monárquico, no ano de 1919, expatriou-se no Brasil para fugir do regime republicano recém-instalado em Portugal.
O seu espírito clássico greco-latino definiu o tom da sua obra, sendo nela predominantes temas como as boas formas de viver, o prazer, a serenidade e o equilíbrio. Influenciado pelo epicurismo, sistema filosófico definido pelo filósofo Epicuro que prega a procura dos prazeres moderados para atingir um estado de tranquilidade e de libertação do medo, Ricardo Reis defendia o preceito grego do “carpe diem” (viver o “aqui e agora”). Além do epicurismo, foi influenciado também pelo estoicismo, escola de filosofia helenística que rejeitava as emoções e os sentimentos exacerbados.
mais uma análise : O ano da morte de Ricardo Reis, de José Saramago
A ironia na construção do personagem
Em O ano da morte de Ricardo Reis Saramago reúne características que são comuns em toda sua obra: passagem histórica, fatos improváveis e/ou impossíveis e engajamento político. A ironia na construção do protagonista transpassa todas essas características, marcando bem a presença de um narrador manipulador que, embora não trave diálogos abertos com o leitor, como o faz Machado de Assis, evidencia sua presença por meio de encontros, confrontos e diálogos inverossímeis.
O tempo da narrativa ocorre no período entre guerras, que foi marcado por graves tensões políticas que culminaram na ascensão dos regimes totalitários em vários países, entre eles Portugal. A opção de Saramago pelo heterônimo Ricardo Reis para protagonizar uma história ocorrida na década de 1930, um dos períodos mais conturbados do século XX, seria absurda se não fosse irônica.
De acordo com o dicionário Houaiss (2001), protagonista é o personagem em torno do qual se constrói toda a trama. No entanto, em O ano da morte…, Ricardo Reis está à margem da trama, não é um personagem de ação, ao contrário, é um protagonista da não-ação. Qualquer desavisado sobre as preferências políticas e o engajamento político de Ricardo Reis poderia entender que seu retorno à Portugal nesse período representaria um impulso à ação, ao combate, sobretudo porque a efervescência política da época era um contexto propício aos politizados, aos idealistas, aos belicosos… Mas Ricardo Reis é um ser politicamente marginal e desinteressado.
Sobre esse aspecto, O ano da morte… dialoga com o poema Os jogadores de xadrez, de Ricardo Reis, com passagem representativa sobre a posição do protagonista.
“[…]
E, enquanto lá fora,
Ou perto ou longe, a guerra e a pátria e a vida
Chamam por nós, deixemos
Que em vão nos chamem, cada um de nós
Sob as sombras amigas
Sonhando, ele os parceiros, e o xadrez
A sua indiferença.”
(PESSOA, 2007, p. 54)
A opção por não-envolvimento de Reis está próxima à independência e à abdicação. É um agir sem perturbações, independente ao caos, apesar do caos.
“[…] Então não concorda, Seria difícil concordar, eu diria, até, que a história desmente o Ferro, basta lembrar o tempo da nossa juventude, o Orfeu, o resto, digam-me se aquilo era um regime de ordem, ainda que, reparando bem, meu caro Reis, as suas odes sejam, para assim dizer, uma poetização da ordem, Nunca as vi dessa maneira, Pois é o que elas são, a agitação dos homens é sempre vã, os deuses são sábios e indiferentes, vivem e extinguem-se na própria ordem que criaram, e o resto é talhado no mesmo pano, Acima dos deuses está o destino, O destino é a ordem suprema, a que os próprios deuses aspiram. E os homens, que papel vem a ser o dos homens, Perturbar a ordem, corrigir o destino, Para melhor, Para melhor ou para pior, tanto faz, o que é preciso é impedir que o destino seja destino, Você lembra-me a Lídia, também fala muitas vezes do destino, mas diz outras coisas, Do destino, felizmente, pode-se dizer tudo, Estávamos a falar do Ferro, O Ferro é tonto, achou que o Salazar era o destino português, O messias, Nem isso, o pároco que nos baptiza, crisma, casa e encomenda, Em nome da ordem, Exactamente, em nome da ordem, Você, em vida, era menos subversivo, tanto quanto me lembro, Quando se chega a morto vemos a vida doutra maneira, e, com esta decisiva, irrespondível frase me despeço, irrespondível digo, porque estando você vivo não pode responder, Por que é que não passa cá a noite, já no outro dia lho disse, Não é bom para os mortos habituarem-se a viver com os vivos, e também não seria bom para os vivos atravancarem-se de mortos, A humanidade compõe-se de uns e outros, Isso é verdade, mas, se assim fosse tão completamente, você não me teria apenas a mim, aqui, teria o juiz da Relação e o resto da família, […]” (O ano da morte de Ricardo Reis, 1988, p. 340-1).
A passagem das linhas 14-18 parece ser mais uma provocação de Saramago. Embora Reis poetize a ordem criada pelos deuses e entendida como o destino supremo, conforme afirma Pessoa (l. 4-10), a ordem, em nome da qual age Salazar, também considerado uma criatura divina, responsável pelo destino das pessoas, não interessa a Ricardo Reis. Saramago utiliza os mesmos elementos constitutivos da poesia de Reis para se referir à composição política da gestão de Salazar e evidenciar a passividade de Reis diante de questões que para ele, Reis, já são foco de interesse.
Outro aspecto curioso e irônico relacionado ao improvável e ao impossível, características tão exploradas por Saramago, é a relação entre o heterônimo Ricardo Reis e o poeta Fernando Pessoa: o heterônimo se torna tão autônomo biologicamente que sobrevive ao próprio poeta. Assim, temos um personagem morto em franco diálogo com um ser inexistente, um heterônimo, discorrendo sobre fatos reais.
O dicionário Houaiss define heterônimo como “nome imaginário que um criador identifica como o autor de obras suas e que, à diferença do pseudônimo, designa alguém com qualidades e tendências marcadamente diferentes das desse criador”. No entanto, no excerto, as ideias do heterônimo vivo coincidem com as do poeta morto. Formou-se uma simbiose em que ambos se “contaminaram” por aproximação, ironizando ou potencializando ainda mais o impossível e o improvável de Saramago. Para “carregar nas tintas”, o heterônimo é assumidamente despolitizado e desinteressado e o Fernando Pessoa não ficcionado também não era muito engajado politicamente, conforme afirma Reis (l. 18).
Mais um fator interessante. Quando Fernando Pessoa espectro discorda que a humanidade se compõe de vivos e mortos (l. 24-25), ele parece estar assumindo uma fala que poderia ser de Saramago. Ambos personagens são mais ou menos vivos e mortos. O Fernando Pessoa existiu na realidade, mas já estava morto no tempo da narrativa; o Ricardo Reis está vivo no tempo da narrativa, mas nunca existiu na realidade. Dessa forma, ambos gozam o ambíguo estatuto de ser real e fictício.
Todos esses elementos incitam uma questão: a escolha do heterônimo menos politizado de Fernando Pessoa foi uma sátira ou uma crítica ao poeta português? Talvez um pouco das duas coisas. É uma provocação situar Ricardo Reis numa narrativa que se passa num período politicamente conturbado, onde se desenvolvem os germes de uma das piores fases de Portugal em todos os tempos e, seguramente, a pior do século XX. Essa escolha de Saramago não é por acaso. Sendo reconhecidamente politizado, o autor não trataria desse período apenas por interesse histórico. Nesse sentido, com uma intenção aparentemente crítica, Saramago coloca em cena o poeta morto, politicamente redimido e buscando ampliar a visão política de Ricardo Reis, o qual é uma espécie de, em termos políticos, superego de Pessoa. Essa ironia camufla um Saramago implacável e moralista.
No entanto, o distanciamento histórico coloca Saramago numa posição privilegiada. Por um lado, ele acompanhou o desenrolar da história e viu no que acarretou a efervescência política do passado, colocando-o em posição confortável para fazer uma retrospectiva. Por outro lado, ele ainda não era adulto quando esses fatos históricos aconteceram, de modo que não é possível saber o que ele faria naquelas condições se tivesse sido capaz de agir politicamente. Dessa forma, Saramago pode apenas questionar quem pôde agir politicamente, mas preferiu não se envolver nessas questões. Assim, o distanciamento histórico do autor lhe permitiu criar a sua própria história fantástica e política, mas, antes de tudo, literária.
http://oquevidomundo.com/o-ano-da-morte-de-ricardo-reis-de-saramago/
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