O seu espírito clássico greco-latino definiu o tom da sua obra, sendo nela predominantes temas como as boas formas de viver, o prazer, a serenidade e o equilíbrio. Influenciado pelo epicurismo, sistema filosófico definido pelo filósofo Epicuro que prega a procura dos prazeres moderados para atingir um estado de tranquilidade e de libertação do medo,
Ricardo Reis defendia o preceito grego do “carpe diem” (viver o “aqui e agora”). Além do epicurismo, foi influenciado também pelo estoicismo, escola de filosofia helenística que rejeitava as emoções e os sentimentos exacerbados.
mais uma análise : O ano da morte de Ricardo Reis, de José Saramago
A ironia na construção do personagem
Em O ano da morte de Ricardo Reis Saramago reúne características que são comuns em toda sua obra: passagem histórica, fatos improváveis e/ou impossíveis e engajamento político. A ironia na construção do protagonista transpassa todas essas características, marcando bem a presença de um narrador manipulador que, embora não trave diálogos abertos com o leitor, como o faz Machado de Assis, evidencia sua presença por meio de encontros, confrontos e diálogos inverossímeis.
O tempo da narrativa ocorre no período entre guerras, que foi marcado por graves tensões políticas que culminaram na ascensão dos regimes totalitários em vários países, entre eles Portugal. A opção de Saramago pelo heterônimo Ricardo Reis para protagonizar uma história ocorrida na década de 1930, um dos períodos mais conturbados do século XX, seria absurda se não fosse irônica.
De acordo com o dicionário Houaiss (2001), protagonista é o personagem em torno do qual se constrói toda a trama. No entanto, em O ano da morte…, Ricardo Reis está à margem da trama, não é um personagem de ação, ao contrário, é um protagonista da não-ação. Qualquer desavisado sobre as preferências políticas e o engajamento político de Ricardo Reis poderia entender que seu retorno à Portugal nesse período representaria um impulso à ação, ao combate, sobretudo porque a efervescência política da época era um contexto propício aos politizados, aos idealistas, aos belicosos… Mas Ricardo Reis é um ser politicamente marginal e desinteressado.
Sobre esse aspecto, O ano da morte… dialoga com o poema Os jogadores de xadrez, de Ricardo Reis, com passagem representativa sobre a posição do protagonista.
“[…]
E, enquanto lá fora,
Ou perto ou longe, a guerra e a pátria e a vida
Chamam por nós, deixemos
Que em vão nos chamem, cada um de nós
Sob as sombras amigas
Sonhando, ele os parceiros, e o xadrez
A sua indiferença.”
(PESSOA, 2007, p. 54)
A opção por não-envolvimento de Reis está próxima à independência e à abdicação. É um agir sem perturbações, independente ao caos, apesar do caos.
“[…] Então não concorda, Seria difícil concordar, eu diria, até, que a história desmente o Ferro, basta lembrar o tempo da nossa juventude, o Orfeu, o resto, digam-me se aquilo era um regime de ordem, ainda que, reparando bem, meu caro Reis, as suas odes sejam, para assim dizer, uma poetização da ordem, Nunca as vi dessa maneira, Pois é o que elas são, a agitação dos homens é sempre vã, os deuses são sábios e indiferentes, vivem e extinguem-se na própria ordem que criaram, e o resto é talhado no mesmo pano, Acima dos deuses está o destino, O destino é a ordem suprema, a que os próprios deuses aspiram. E os homens, que papel vem a ser o dos homens, Perturbar a ordem, corrigir o destino, Para melhor, Para melhor ou para pior, tanto faz, o que é preciso é impedir que o destino seja destino, Você lembra-me a Lídia, também fala muitas vezes do destino, mas diz outras coisas, Do destino, felizmente, pode-se dizer tudo, Estávamos a falar do Ferro, O Ferro é tonto, achou que o Salazar era o destino português, O messias, Nem isso, o pároco que nos baptiza, crisma, casa e encomenda, Em nome da ordem, Exactamente, em nome da ordem, Você, em vida, era menos subversivo, tanto quanto me lembro, Quando se chega a morto vemos a vida doutra maneira, e, com esta decisiva, irrespondível frase me despeço, irrespondível digo, porque estando você vivo não pode responder, Por que é que não passa cá a noite, já no outro dia lho disse, Não é bom para os mortos habituarem-se a viver com os vivos, e também não seria bom para os vivos atravancarem-se de mortos, A humanidade compõe-se de uns e outros, Isso é verdade, mas, se assim fosse tão completamente, você não me teria apenas a mim, aqui, teria o juiz da Relação e o resto da família, […]” (O ano da morte de Ricardo Reis, 1988, p. 340-1).
A passagem das linhas 14-18 parece ser mais uma provocação de Saramago. Embora Reis poetize a ordem criada pelos deuses e entendida como o destino supremo, conforme afirma Pessoa (l. 4-10), a ordem, em nome da qual age Salazar, também considerado uma criatura divina, responsável pelo destino das pessoas, não interessa a Ricardo Reis. Saramago utiliza os mesmos elementos constitutivos da poesia de Reis para se referir à composição política da gestão de Salazar e evidenciar a passividade de Reis diante de questões que para ele, Reis, já são foco de interesse.
Outro aspecto curioso e irônico relacionado ao improvável e ao impossível, características tão exploradas por Saramago, é a relação entre o heterônimo Ricardo Reis e o poeta Fernando Pessoa: o heterônimo se torna tão autônomo biologicamente que sobrevive ao próprio poeta. Assim, temos um personagem morto em franco diálogo com um ser inexistente, um heterônimo, discorrendo sobre fatos reais.
O dicionário Houaiss define heterônimo como “nome imaginário que um criador identifica como o autor de obras suas e que, à diferença do pseudônimo, designa alguém com qualidades e tendências marcadamente diferentes das desse criador”. No entanto, no excerto, as ideias do heterônimo vivo coincidem com as do poeta morto. Formou-se uma simbiose em que ambos se “contaminaram” por aproximação, ironizando ou potencializando ainda mais o impossível e o improvável de Saramago. Para “carregar nas tintas”, o heterônimo é assumidamente despolitizado e desinteressado e o Fernando Pessoa não ficcionado também não era muito engajado politicamente, conforme afirma Reis (l. 18).
Mais um fator interessante. Quando Fernando Pessoa espectro discorda que a humanidade se compõe de vivos e mortos (l. 24-25), ele parece estar assumindo uma fala que poderia ser de Saramago. Ambos personagens são mais ou menos vivos e mortos. O Fernando Pessoa existiu na realidade, mas já estava morto no tempo da narrativa; o Ricardo Reis está vivo no tempo da narrativa, mas nunca existiu na realidade. Dessa forma, ambos gozam o ambíguo estatuto de ser real e fictício.
Todos esses elementos incitam uma questão: a escolha do heterônimo menos politizado de Fernando Pessoa foi uma sátira ou uma crítica ao poeta português? Talvez um pouco das duas coisas. É uma provocação situar Ricardo Reis numa narrativa que se passa num período politicamente conturbado, onde se desenvolvem os germes de uma das piores fases de Portugal em todos os tempos e, seguramente, a pior do século XX. Essa escolha de Saramago não é por acaso. Sendo reconhecidamente politizado, o autor não trataria desse período apenas por interesse histórico. Nesse sentido, com uma intenção aparentemente crítica, Saramago coloca em cena o poeta morto, politicamente redimido e buscando ampliar a visão política de Ricardo Reis, o qual é uma espécie de, em termos políticos, superego de Pessoa. Essa ironia camufla um Saramago implacável e moralista.
No entanto, o distanciamento histórico coloca Saramago numa posição privilegiada. Por um lado, ele acompanhou o desenrolar da história e viu no que acarretou a efervescência política do passado, colocando-o em posição confortável para fazer uma retrospectiva. Por outro lado, ele ainda não era adulto quando esses fatos históricos aconteceram, de modo que não é possível saber o que ele faria naquelas condições se tivesse sido capaz de agir politicamente. Dessa forma, Saramago pode apenas questionar quem pôde agir politicamente, mas preferiu não se envolver nessas questões. Assim, o distanciamento histórico do autor lhe permitiu criar a sua própria história fantástica e política, mas, antes de tudo, literária.
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